AJ Chagas
O VEGETARIANISMO NAS TRADUÇÕES BÍBLICAS COM COMENTÁRIOS POR FILON DE ALEXANDRIA (RAMATIS)
Ainda é comum ouvir uma costumeira alegação, de ordem dogmático-religiosa, na justificativa para uma base no mínimo especista na interpretação de passagens bíblicas que, apoiando-se ou buscando sustentação a uma pretensa natureza semi-divina, outorgaria direito ou mesmo posse sobre as demais espécies.
Inicialmente cabe apontar que o objeto aqui não recai numa tradução revisionista de todo o texto bíblico, mas sim demonstrar que equívocos de tradução, por mais simples que alguém alegue, levam a erros grandiosos de interpretação, e imputam uma visão distorcida de um texto que é considerado por muitos como sagrado.
Apontar essas discrepâncias é saudável análise para ofertar luz a posições diversas perpetradas ao longo dos séculos ao que se propunha na origem das escrituras.
Vemos que em Gênesis 1:26, assim está escrito nas principais traduções em português :
E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. (Almeida Corrigida Fiel)
E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se arrasta sobre a terra. (Almeida Revisada Imprensa Bíblica)
Então disse Deus: "Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais grandes de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão". (Nova Versão Internacional)
Disse mais Deus: Façamos um homem, um ser semelhante a nós, e que domine sobre todas as formas de vida na terra, nos ares e nas águas. (O Livro)
Disse também Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança: domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todo o réptil que se arrasta sobre a terra. (Sociedade Bíblica Britânica)
Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra." (Versão Católica)
Bem sabemos que a Bíblia é uma obra escrita a muitas mãos, sujeita aos inúmeros copistas de todas as épocas e, não menos importante, a toda sorte das múltiplas interpretações, versões e traduções como acima já traz pequena demonstração.
Ao se analisar a versão original em hebraico desta pequena mas importante passagem, percebe-se que a tradução oferecida tem traduzido como “ter domínio” a palavra “yirdu”. “Yirdu” é melhor traduzido por “descerão”.
Se a intenção da tradução do hebraico de fato fosse transmitir a ideia de domínio na criação, a palavra que deveria ser empregada era “shalthanhon”.
Nem mesmo a ideia de uma gestão benévola do homem sobre as demais criaturas é passada neste versículo, visto que a palavra que a Bíblia usa quando se refere ao domínio pacífico é “mashel”. Porém, o que vemos é que foi empregada a palavra "yirdu", o que exige assim uma tradução mais fiel do versículo:
“Disse Deus: façamos o homem à nossa imagem e semelhança; e DESCERÃO PARA os peixes do mar, e para as aves dos céus, para os rebanhos e para toda a terra e para todo réptil que rasteja sobre a terra”.
Se seguirmos essa tradução, que é mais fiel ao original, podemos interpretar que a intenção da Bíblia pode ter sido mostrar que Deus criou o homem de uma maneira especial, mas que pelo homem desceria a mensagem Divina a todo animal, pois o homem estaria na condição da imagem e da semelhança do Criador, e assim ser percebida pelo reino animal.
Até mesmo a continuação do livro parece apoiar esta ideia. Em Gênesis 1:28, costuma-se ler o versículo traduzido desta forma:
“E Deus os abençoou e lhes disse: sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e SUJEITAI-A; DOMINAI SOBRE os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra.”.
Novamente, a palavra “desça” aparece traduzida como “domine”.
O que aparece nesse versículo como “sujeitai-a” é a palavra “kibshah”, que significa preservar. Fosse de fato a intenção do autor-tradutor transmitir a ideia de “sujeitar” ele deveria ter empregado a palavra “hichriach”.
A tradução literal deste versículo deveria ser:
“E abençoou-os Deus e lhes disse Deus: fecundem-se, tornem-se muitos, encham a terra e PRESERVEM-NA; E DESÇAM para os peixes do mar, e para as aves dos céus e para todo animal que rasteja sobre a terra”.
Entre sujeitar e preservar já se percebe a enorme diferença dos verbos de ação e o que daí decorre a ampla responsabilidade humana perante o planeta e aos animais numa interpretação literal e fiel ao texto.
E a ideia de que homens e animais desde aquela época estariam em condições de igualdade perante a Divindade pode ser encontrada em Eclesiastes 3:18-21:
“Disse ainda comigo: é por causa dos filhos dos homens, para que Deus os prove, e eles vejam que são em si mesmos como os animais. Porque o que sucede aos filhos dos homens sucede aos animais; o mesmo lhes sucede: como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego de vida, e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais; porque tudo é vaidade. Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó e ao pó tornarão. Quem sabe se o fôlego de vida dos filhos dos homens se dirige para cima e o dos animais para baixo, para a terra?”
Essa tradução tendenciosa do versículo de Gênesis 1:26, é uma das correntes por onde se originou parte da concepção de que o homem além de se considerar uma divindade outorgada a arbitrar os demais reinos, teria o direito de sujeitar ao seu domínio todos os demais seres da criação e também a Terra.
É de se atentar que a palavra Divina já apresentava uma intenção de sugerir ou indicar o caminho de uma alimentação mais saudável, ou mesmo uma recomendação de caráter nutricional.
O que se vê em Gênesis 1:29 e 1:30 apresenta o que poderia ser a primeira lei dietética estabelecida por Deus para o homem e para os outros animais. Pois assim consta:
“E disse Deus: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão sementes e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há frutos que dão sementes; isso vos será por alimento. E a todos os animais da terra, e a todas as aves dos céus, e a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes será para mantimento. E assim se fez.”.
Nesses versículos fica demonstrado que não era (nem nunca deve ter sido) a intenção original de Deus, até porque está em Gênesis (Criação), que o homem precisasse matar animais para comer. A dieta vegetariana pode ser vista como consistente desde o plano original do Criador.
Apesar disso é de se perguntar: quantas pessoas não leem esses versículos nas versões originais e corretas em suas traduções, diariamente, e deixam de refletir sobre esse enorme significado e mudança consciencial?
Outra passagem curiosa e que reforçaria a tese vegetariana é o que consta em Gênesis 2:8. Pois afirma esta passagem que quando Deus criou o homem, colocou-o para habitar no "Jardim do Éden". Nesse jardim, foi ordenado que o homem se servisse livremente dos frutos de toda árvore (Gênesis 2:16), exceto da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gênesis 2:17). O que certamente é uma passagem revestida de muitos simbolismos e chaves-interpretativas, mas desconsiderar a literalidade por conveniência não é atitude prudente.
Devido ao tal pecado original, o homem teria sido expulso deste tal jardim e daí recebeu também a permissão para comer as ervas do campo (Genesis 3:18). Assim se poderia até aventar que a Bíblia sugeriria, de início, que Deus criou o homem frutariano, e depois o teria lançado ao vegetarianismo.
Independentemente que outras passagens bíblicas sugestionem, proporcionem margem ou sejam interpretadas como que abonadoras ao carnivorismo, cabe lançar reflexão que tal qual no início da criação, em que nem o homem nem os animais faziam uso da carne em sua alimentação, como acima explicado, a promessa bíblica também é de que, com o retorno do Messias (pela via do coração), o mundo (Jerusalém renovada ou regenerada) retornaria a concepção original do vegetarianismo inicial, bem como a compaixão reinaria em definitivo.
Pois lê-se em Isaías 11:6-8 que “O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao cabrito; o bezerro, o filhote do leão e o animal doméstico andarão juntos, e um condutor pequeno os guiará. A vaca e a ursa pastarão juntas, e as suas crias juntas se deitarão; o leão como o boi comerá palha. A criança de peito brincará sobre a toca da áspide, e o já desmamado meterá a mão na cova do basilisco.” .
Continua Isaías (65:25): “O lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha como o boi; pó será a comida da serpente. Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte, diz o Senhor”.
Filon de Alexandria (Ramatis ao tempo de Jesus) em De Opificio Mundi (Da Criação do Mundo Segundo Moisés) em seu item 83, oferecendo interpretação das passagens bíblicas, afirma que "era preciso que o homem fosse o último dos entes criados para que causasse espanto ao aparecer de súbito, no último momento, diante dos outros animais". Segue a narrativa dizendo que os animais vendo o homem "pela primeira vez, ficariam maravilhados, adorá-lo-iam naturalmente como um chefe e senhor". Elenca como consequência desta situação "que todos os animais, de todas as espécies, se tornariam mansos...". E que inclusive "os mais selvagens por natureza tornar-se-iam imediatamente mais dóceis...". No item seguinte resume tal potência delegada pelo Criador ao homem como um "animal soberano" e "rei de todas as criaturas sublunares, terrestres, aquáticas e aéreas".
Já no item 87 infere que "nenhum animal ficaria livre e foge da autoridade do homem", contudo não se deve ignorar, no que consta em passagem anterior (79) no alerta que faz quando afirma que "se os prazeres irracionais não se assenhorassem da alma (do homem), erguendo contra ela (virtudes humanas) a muralha da gula e da lubricidade", dentre outras reprováveis características, o homem viveria em "abundância, comodidade e sem preocupação".
Ramatis ao tempo atual (década de 50) já oferecia ampla consciência sobre esse tema, pois foi categórico na inferência de que a alimentação vegetariana deveria ser "dosada cientificamente para suprir todos os gastos orgânicos". O que já é amplamente de domínio da humanidade tais conhecimentos.
Mas não deixou brecha para relativizações quanto àqueles que já alçaram discernimento elevado e com isso maior responsabilização.
É direto, pois afirma que "é aberrativo e censurável que homens já vinculados a labores espiritualistas, como espíritas, umbandistas, esoteristas, rosacrucianos, teosofistas ou iogas, ainda se fartem e se deliciem com a alimentação inferior, repugnante e impiedosa, que provém da carne estraçalhada dos animais"!
∆JC
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